A babá
de Freud e outras babás
Freud’s nanny and other nannies
Resumos
Depois
da publicação das cartas de Freud a Fliess a literatura psicanalítica começou a
prestar atenção à babá de Freud e, por consequência, à importância da babá na
família ideal dessa literatura. Incluída, na prática, nos modelos explicativos
de análise da família burguesa desde o século dezenove, a babá, ainda demasiado
presente nas famílias de classe média e alta no Brasil, foi excluída da teoria
analítica e continua a por em questão o triângulo
"papai-mamãe-filho".
A babá
de Freud e outras babás*
Depois
da publicação das cartas de Freud a Fliess a literatura psicanalítica começou a
prestar atenção à babá de Freud e, por consequência, à importância da babá na
família ideal dessa literatura. Incluída, na prática, nos modelos explicativos
de análise da família burguesa desde o século dezenove, a babá, ainda demasiado
presente nas famílias de classe média e alta no Brasil, foi excluída da teoria
analítica e continua a por em questão o triângulo
"papai-mamãe-filho".
Em
meados do século vinte, precisamente em 1964 e 1965, duas babás, encarnadas
pela mesma atriz, Julie Andrews, fizeram sucesso no cinema e, antes ou depois, em vários palcos do mundo. Uma delas
era inglesa, a outra austríaca.1 As babás inglesas eram então há muito tempo
famosas, tanto no seu país, como no exterior: vários memorialistas e romancistas
do século 19 as mencionam como fontes de prazer, ou, com freqüência, de
desprazer.2 Já as babás austríacas eram menos conhecidas até que foram postas
na cena analítica por Sigmund Freud.3 Quase todas as suas pacientes jovens
tinham babás/governantas
algumas tinham duas, o que vai levar a um curioso desdobramento dessa
personagem, seja na relação mãe-boa/babá-má, seja, numa espécie de duplicação,
como babá boa/babá má.4
O
interesse de Freud pelas babás começa, parece, com as análises dos casos que
ficaram conhecidos na literatura sobre a história freudiana como aqueles que
deram origem à "teoria da sedução" e com a sua auto-análise. Esse interesse, no
entanto, se estende para muito além
dos marcos temporais de uma ou de outra, como veremos. As recentes publicações críticas, surgidas no rastro do que
está sendo
chamado de "Freudian wars"
as guerras freudianas, no entanto, prestaram pouquíssima atenção a esse interesse, talvez
porque os autores julguem que se trata de um assunto "menor" ou
"doméstico".5
Tento argumentar aqui, com o apoio de outros autores que se dedicaram ao
assunto, que se trata de um tema de grande relevância, não apenas na economia
doméstica, e na economia dos afetos, do século dezenove, em Viena, e alhures no
mundo que se industrializava, mas também para uma reflexão feminista no Brasil
contemporâneo.
A
teoria da sedução
Convém
começar por um resumo sobre a assim chamada "teoria da sedução": em
1896 Freud publicou um artigo polêmico, no qual atribuía a causa da histeria a
um trauma sexual sofrido por suas pacientes e alguns pacientes homens desde atentados ao pudor até
abusos sexuais, por parte de membros de sua família mais próxima: tios (alguns
deles que, em notas posteriores, se revelaram como sendo pais), irmãos, tutores,
colegas de escola, ou babás. Diz ele que o trauma era causado,
"infelizmente com freqüência grande demais, [por] um parente
próximo".6 Nesse artigo, ele afirmava que nos 18 casos de histeria que
analisara até então (seis homens e doze mulheres), todos eles apresentavam essa
etiologia, ou causa, da condição. A partir do ano seguinte, começou a duvidar
dessa proposta, tendo escrito a Fliess: "Não acredito mais na minha
neurótica [teoria das neuroses]".7 Apesar de ainda mencionar a teoria da
sedução em outras cartas desse ano (e voltar a mencioná-la também anos depois),
passou, então, a tratar dessas denúncias como sendo uma fantasia de suas
pacientes.8
Vários
autores contemporâneos trataram do tema da babá nos textos freudianos, mas
quase sempre interessados na babá dele. Sua babá, da qual até o nome está em
discussão hoje, teria sido uma tcheca, católica, que o levava à missa e o
reprovava por ele não ser capaz de nada.9 Diz ele:
O sonho
de hoje trouxe o seguinte, sob os mais estranhos disfarces: ela era minha
mestra em assuntos sexuais e reclamava por eu ser desajeitado e incapaz de
fazer qualquer coisa. [E, um pouco mais adiante] ela me lavava numa água
avermelhada em que se havia banhado antes.10
Contando
que a babá o fazia furtar dinheiro e dar a ela, Freud interpreta o sonho como
sendo uma reprovação por estar cobrando de pacientes por seu mau tratamento,
assim como "a velha recebia dinheiro de mim pelo mau tratamento que me
dispensava". Na carta seguinte, de 15 de outubro, Freud relata o que sua
mãe lhe contou da babá. Ao perguntar se lembrava dela, obteve a seguinte
resposta:
"É
claro", disse ela, "uma pessoa mais velha, muito esperta, que estava
sempre levando você para alguma igreja: quando voltava para casa, você fazia
sermões e nos dizia tudo sobre Deus Todo-Poderoso. Durante meu resguardo de
Anna (dois anos e meio mais nova), descobriu-se que ela era ladra e todos os
reluzentes kreuzers e zehners [moedas] novos e todos os brinquedos que tinham
sido dados a você foram encontrados em poder dela. Seu irmão Phillip foi
pessoalmente buscar um policial; ela pegou dez meses de cadeia" (Masson,
1986:272).
Não
interessa aqui discutir o fato de que Freud usou a lembrança de sua mãe para
reforçar a interpretação anterior que fez do sonho no qual ele roubava nem o fato, sublinhado por
alguns analistas de que ele se identificava com ela ("eu=ela"), e sim
o fato de que parece que é com a auto-análise que a figura da babá passa a ser
uma figura maligna ou, na melhor das hipóteses, ambígua.11
De
fato, ainda que as babás já tivessem aparecido em várias cartas desse mesmo ano
como sedutoras, elas pareciam estar mais ligadas às perversões dos pais em
relação a elas
ou às criadas
da casa, muitas vezes dublês
de babás do que às perversões delas em relação aos filhos, ainda que essas
cenas estivessem presentes no seu texto de 1896.12 Suas preocupações incluíam
também as babás de sua família. Numa nota à carta de 14 de novembro de 1897,
por exemplo, cita a babá de um de seus filhos como castradora, ao registrar que
ele perdera o segundo dente: "De fato, o primeiro foi arrancado na noite
de 9 de novembro pela babá; talvez tivesse durado até o dia 10" (Id.
ib.:282, ênfase adicional). Sobre outro filho, que costumava se machucar
repetidamente, dirá mais tarde, em 1899: "Atribuo isso a uma ligeira
histeria. Ele foi o único a quem a antiga babá tratou mal" (Id. ib.:368).
E, numa observação sobre um texto literário, se pergunta de onde vem o material
para se criar o romance familiar
adultério,
filhos ilegítimos e coisas semelhantes? Em geral [d]os círculos sociais
inferiores das criadas. Essas coisas são tão comuns entre elas que nunca nos
falta material, e são especialmente propensas a ocorrer quando a própria
sedutora foi uma empregada/da casa/. Em todas as análises, portanto, ouve-se
duas vezes a mesma história: uma vez como fantasia sobre a mãe; a segunda como
lembrança real da criada (Id. ib.:318, ênfase adicional).
Na
carta em que rememorava sua babá, Freud fizera exatamente isso: acoplara sua
lembrança da velha criada à memória de uma viagem na qual teria visto sua mãe
nua.13
As
babás, e as criadas em geral, são de fato onipresentes no romance familiar dos
círculos de Freud: o menino Hans, que tinha fobia por cavalos, cavalga a
empregada e a intima a tirar a roupa; o "homem dos lobos", como
Freud, também tivera uma babá camponesa, que lhe contava histórias religiosas;
Dora tinha duas governantas, uma da qual gostava, outra que abominava além do fato de a babá das crianças da família K ter sido seduzida pelo
dono da casa; Anna O. também
gostava de uma governanta e detestava outra e Anna Freud também teve uma
babá católica, a quem amava. A filha mais velha de Freud, Mathilde, teve uma
ama de leite, raramente mencionada, e a família Freud manteve relações com sua
família durante muitos anos.14
O
primeiro a ter tratado extensamente do tema parece ter sido Jim Swan, em um
artigo de 1974.16 Swan cita as análises pioneiras de Max Schur, de 1972, e o
trabalho de Didier Anzieu, que teve várias edições, a partir de 1959. Schur
foi, segundo ele, o primeiro a notar a discrepância entre a frase em alemão,
que significava algo como "a primeira sedutora" por contraste com a teoria
freudiana, que postulava o pai como o primeiro sedutor e a frase da tradução inglesa, na Standard Edition,
"a originária
primária [de
minhas dificuldades]". Esse autor notou também que a "babá" de
Freud originou-se da tradução inglesa, na biografia de Ernest Jones, que usou o
termo nanny para termos alemães que significavam "criada".17
O que
precisa ser explicado é como a teoria do complexo de Édipo dá conta dos
impulsos culpados em relação à mãe, mas ignora o despertar erótico do menino
pelas mãos de sua babá, particularmente levando-se em conta que sua babá obtém
de Freud uma atenção muito maior do que sua mãe.
Na
discussão sobre as interpretações possíveis dos sonhos de Freud durante sua
auto-análise, Swan vai pontuando a presença da babá como referência importante
no seu desenvolvimento até chegar à conclusão de que a "circunstância
notável" é a de que Freud teve, de fato, duas mães,
sua mãe
real
cuja nudez ele só
podia expressar em latim
e sua babá, de quem
ele se lembra como associada a várias
experiências
sexuais perturbadoras. Tendo tido duas mães,
e a sorte de ter a "má"
e feia mãe banida
de sua vida quando tinha apenas dois anos e meio, permite a Freud manter uma
divisão segura entre a mãe boa e a mãe má internalizadas (Id. ib.:34).
Inconscientemente,
a babá de Freud foi sua sedutora e aquela que o envergonhou; sua mãe foi o puro
objeto de um desejo culpado (Id., ib.:50).
A mãe
boa e a babá má, ou a babá boa e a babá má, vão, a partir daí, aparecer
constantemente nas análises de Freud, como se muitos de seus pacientes
repetissem a sua trajetória de menino.18 Em qualquer caso, a babá, ou
governanta, como figura necessária no lar burguês vienense, está
permanentemente presente
a despeito do fato, como Swan observa, de que o pai de Freud estivesse sempre à beira da miséria. Não é possível, nesse rápido resumo, fazer justiça ao trabalho de Swan, mas é preciso registrar que ele faz
uma longa digressão sobre as relações sociais presentes na infância de Freud,
mostrando que o Édipo burguês
luta
para preservar sua distinção e independência daqueles de cujo trabalho corporal
ele de fato depende para sua existência e status (Id. ib.:54). [E conclui
afirmando] Assim, a descoberta do complexo de Édipo por Freud não apenas emerge
das memórias de desejo agressivo e culpado, de um menino por sua mãe, mas
também das memórias de sua dependência dela uma dependência rememorada, no entanto,
como a sedução de um menino burguês, austríaco, por uma mulher da classe
trabalhadora tcheca, numa província do Império Austríaco que ainda se
recuperava da revolução de 1848 (Id. ib.:64).
Depois
de Swan, Jane Gallop fez uma análise sobre a importância da babá na cena
analítica a partir da discussão de Catherine Clément e Hélène Cixous (1975) do
caso Dora, observando que a figura da babá, ou governanta, não se esgota na
identificação de Freud com uma babá ou criada neste caso, mas tem uma "relação
estrutural, decisiva", com a psicanálise.
Em
nenhum dos textos freudianos, a família esteve completamente fechada às
questões da classe econômica. E o locus mais insistente dessa intrusão no
círculo familiar (intrusão do simbólico no imaginário) é a criada/
governanta/babá. Como diz Cixous, "ela é o buraco na célula social"
(Gallop, 1992:144).19
A
análise de Cixous, retomada aqui por Gallop, é de que o que Freud não tolerou
na sua relação com Dora foi ter sido dispensado por ela como o seria uma governanta ou
uma babá
depois de um aviso prévio.20
"Nem Dora nem Freud podem tolerar a identificação com a babá seduzida e abandonada".
Ser feminizado, para Freud, significaria aceitar o lugar das mulheres em
circulação numa
troca efetuada entre homens. Para Dora, significaria que, apesar de sua posição
social, ela também era objeto dessa troca. No entanto, ao contrário do que diz
Gallop, essa não é uma análise de Dora e Freud era Dora quem estava
enraivecida "pelo fato de que tinha sido entregue ao Senhor K. em
pagamento para que ele tolerasse as relações entre o pai dela e a esposa
dele".21
A
intromissão das babás
ou das classes subalternas
nos lares burgueses vai ser retomada por Anne McClintock em 1995, desta feita
acrescentando a variável raça ao universo pesquisado além de retomar a discussão da babá de Freud. Ela própria resume essa parte de sua
pesquisa como a análise
de "um dos atos de desaparecimento mais bem sucedidos da história moderna" o da invisibilização do trabalho doméstico.22 E, como mostra, dava
muito trabalho aparentar o lazer que supostamente as donas-de-casa burguesas ou
de classe média ostentavam durante a época vitoriana. A excelente iconografia
acumulada no capítulo dedicado ao trabalho doméstico quase dá conta, por si só,
de expor seu argumento. A instigante história do casal S/M Arthur J. Munby e
Hannah Culwick
sua esposa e sua empregada doméstica
quase fica em segundo plano nessa análise.
Munby, que tinha o hábito
de fotografar e desenhar mulheres das classes trabalhadoras e que as enegrecia em seus
desenhos
também tinha
tido uma babá
com essa origem de classe, chamada Hannah, e uma mãe delicada e distante.23 Seria
difícil
resumir aqui a complexa história
acompanhada por McClintock, mas cabe lembrar que ela se vale de uma noção de
Julia Kristeva, a de abjeção, para sublinhar que abjeto é "algo rejeitado,
mas do qual não nos separamos" (McClintock, 1995:71). A noção, tributária
da de Mary Douglas sobre poluição, poderia ter um melhor rendimento teórico no
seu tratamento da relação gênero/raça, como veremos adiante.24 Propondo-se a
articular, em sua análise, as categorias de gênero, raça, classe e sexualidade,
a autora sugere que a figura liminar (evocada por Cixous e Gallop), sempre na
porta entre a casa e a rua, a família e a perdição, da babá/governanta/criada
mostra que a cisão vitoriana entre a mulher boa e a má a santa e a puta "teve origem, assim, não num arquétipo universal, mas na estrutura
de classe da unidade doméstica"
(Id. ib.:87). Era a "contradição cotidiana da unidade doméstica vitoriana entre o poder mal e mal
reprimido da trabalhadora doméstica
assalariada e a relativa falta de poder da esposa não assalariada" que
fundamentava essa duplicidade (Id. ib.:96). Assim, é uma pena que ela não tenha incluído o marcador
idade na sua lista de categorias a serem consideradas, pois falha inteiramente
em apreender a perspectiva infantil da relação com a babá a babá má em oposição à mãe boa, ainda que violenta.
Toda a
sutileza demonstrada em sua análise das relações de classe na Inglaterra
vitoriana é deixada de lado quando a autora se move para a África do Sul,
acompanhando a trajetória da autora sul-africana Olive Schreiner (Id.
ib.:cap.7). Por denunciar as estratégias domésticas de dominação das aias
adultas
negras
sobre as crianças,
a ficção de
Schreiner não
recebe qualquer simpatia de McClintock.25 Assim como sua análise sobre a Inglaterra tem uma
inflexão forte
nas relações de
classe, sua análise
sobre a África do
Sul é
fortemente flexionada sobre a questão da cor, mais do que da raça.26 Retratando
o conflito como se dando entre brancos e negros, a autora esquece com
freqüência o que tinha anotado no início de seu trabalho ao mostrar, por exemplo, que os
irlandeses brancos eram não
só
socialmente enegrecidos como forma de desqualificação na Inglaterra vitoriana,
como também moralmente rebaixados. Raça torna-se, assim, sinônimo de cor, e
todo o aspecto político do racismo se perde.27 Como ela própria observara, a
cor por si só não basta para constituir-se num sinal de alteridade no caso de Schreiner, a diferença é dada também pela idade: na sua ficção, trata-se da visão de uma menina sobre adultos
opressores. O fato de que ela tenha se tornado uma ativista de oposição às políticas racistas de seu país é bem
uma prova de sua lucidez, quando adulta, em relação à sua situação na infância.
A autora perde também de vista que a luta anti-racista de Schreiner poderia ter
sido produzida de maneira análoga à fascinação que Munby tinha pelas mulheres
trabalhadoras
isto é, na
convivência diária de ambos, na infância, com uma mulher
trabalhadora e com mulheres negras. A noção
de abjeção supõe alguma coisa que incorporamos
na infância e da
qual não podemos
nos livrar: um fascínio
ou uma repulsa.
Deixando
de lado a frutífera utilização da psicanálise, feita no caso Munby/Culwick, e
ao tratar Olive Schreiner como uma colonialista privilegiada, Mclintock
apresenta, mas não analisa, as agressões sofridas por ela, sua auto-mutilação,
seus devaneios e alegorias, "um obscuro trauma sexual", sua asma, que
a acompanhou pela vida afora
e que a tornam tão
semelhante às
vienenses suas contemporâneas
para tratá-la como
epígono de
"uma condição
colonial peculiar". Ao tomá-la
como representativa da cultura colonial
que, afirma, citando outro autor, "não
tem memória"
perde de vista sua condição
humana e a trata como simples exemplo de "uma escritora colonialista".28
A menina humilhada e oprimida, porque branca, não pode beneficiar-se de qualquer
simpatia pelo simples fato de que suas opressoras eram negras, e a complexa
articulação proposta entre raça, classe, gênero e sexualidade se perde por se
ter perdido uma dimensão fundamental da constituição da sexualidade as experiências infantis. Foram tais
experiências que
ela, ao invés de levar para o divã, levou para sua ficção e para sua produção
intelectual em geral. Não tendo sido judia, nem vivido em Viena, escapou ao
rótulo que algumas de suas famosas contemporâneas receberam, a partir de
"sintomas" muito semelhantes, que eram também sintomas da situação da
mulher não satisfeita com as convenções sociais de seu tempo e que limitavam
sua atuação.29 Reduzir essa constelação de experiências na África, na Inglaterra, sua atuação intelectual e política, sua vida sempre
fragilizada pela doença
a uma única
causa, a situação
colonial, é,
no mínimo,
empobrecer a trajetória
de uma das mulheres mais interessantes da era vitoriana.
Aqui
seria preciso uma longa digressão a respeito dos usos implícitos, nessa
análise, da noção de cultura
no caso a "cultura colonial". Contento-me em citar a observação de Elisabeth Roudinesco
(1989:176/7) sobre Jung que
sustentou
que cada povo possuía uma mentalidade diferente da de seus vizinhos, e que,
nessas condições, era preciso, pelo bem da ciência, construir uma psicologia
adaptada à alma coletiva de cada povo.
Essa é
das poucas referências ao fato de que as amas de leite negras tinham de abdicar
de amamentar seus filhos
ou amamentá-los
secundariamente
quando eram convocadas, ou alugadas, para amamentar as crianças brancas.
Numa
análise análoga à de McClintock, Sandra Graham (1992) faz uma cuidadosa
avaliação sobre a relação entre criadas
as amas de leite, as mais bem pagas, entre elas e patrões/patroas no Rio de Janeiro do
final do século
19 e começo do século 20. Os dados que apresenta
sobre o trabalho doméstico são semelhantes aos dados para a Europa e os Estados
Unidos
uma maioria de mulheres dedicadas ao trabalho doméstico e, dentre elas, uma
maioria de negras e solteiras. Graham também
evoca figuras famosas da sociedade brasileira que tiveram vinculações com babás
ou criadas
Machado de Assis, que deixou de pagar suas criadas, e Rui Barbosa, que
reclamava por ter de usar uma babá
para sua filha, já
que a mulher não
podia amamentar.32 Isto é,
que aqui, como na Europa, a babá/criada era uma figura fundamental na
manutenção da família. Tanto aqui, como lá, ela era também estigmatizada a ênfase aqui sendo na
possibilidade de transmissão
de doenças, mais
do que na transmissão
de maus costumes, mas, nos dois casos, era de sua pobreza que advinha o perigo
para as famílias. Também aqui as babás/criadas eram, às vezes, objeto do desejo
dos patrões
mas nunca se menciona a possibilidade de sedução de crianças. É como se, no caso brasileiro, a
cor fosse uma espécie
de véu que
cobria a pobreza
perenemente invocada pelos reformadores sociais, seja no seu ataque aos cortiços, seja no ataque aos
"miasmas" que provinham dos lugares habitados pelos pobres e ameaçavam os lares nos quais esses
pobres (essas pobres, de início
escravas) se infiltravam.33 Os matizes da pobreza, de fato, parecem importar
menos do que a pobreza propriamente dita.
Num
belo texto, no qual recupera a (pouca) bibliografia nacional sobre o tema da
babá, Rita Laura Segato começa por apontar para as discussões, no contexto do
debate sobre a abolição da escravidão, a respeito dos males "da
contaminação e da corrupção moral que a presença de negros na intimidade da
casa senhorial estaria a introduzir" (Segato, 2006:5).34 Isto é, de
negras, primeiro como amas de leite e, depois, como "amas-secas", as
babás que não aleitavam as crianças.35 Mostrando que a prevalência das mulheres
no trabalho doméstico continua no nosso país a tradição evocada por Tilly e
Scott na sua análise do período da revolução industrial, e por Graham para o
Brasil do século 19, Segato cita a estatística oficial de 2006: 94,3% dos
trabalhadores/trabalhadoras domésticos são mulheres e 61,8% deles, ou delas,
são pretos ou pardos. Cita, em seguida, um registro, a partir de suas pesquisas
com as religiões afro-brasileiras, nas quais Iemanjá seria a "mãe
legítima" dos orixás
mãe biológica e mãe jurídica e Oxum a "mãe de criação". Iemanjá seria o equivalente da mãe inglesa, citada antes: "mãe fria, hierárquica, distante e
indiferente". A autora não
desenvolve a discussão sobre as qualidades de Oxum, mas recorre a registros
iconográficos
como o da pintura que representa D. Pedro II no colo de sua ama, retrato a óleo atribuído a Debret, para registrar a
importância da
"mãe
preta" na cena nacional. Recorre, depois, à outra análise, que mostra a
transformação que as fotos de crianças e babás vão sofrendo entre 1862 e 1885.
Até
aproximadamente 1880, as fotos captavam as crianças em composições na moda
internacional da época; somente que, no Brasil, o típico quadro europeu da mãe
segurando a criança junto ao rosto era substituída pela babá negra ocupando
esse lugar. (...) Contudo, em torno de 1880, diz a autora, as composições
revelam a progressiva intenção de ocultar a figura da ama negra que, ainda
assim, necessariamente, continua a sustentar o bebê no seu colo para este poder
ser fotografado, e "as amas negras passam a existir nas fotografias como
rastros: uma mão, um punho, até serem completamente banidas das imagens";
"a princípio mostrada com orgulho, de rosto inteiro, depois escondida, em
segundo plano, desfocada e retocada, até ser completamente retirada do quadro
nacional".36
Desapontando
os leitores em relação à questão posta no título de seu trabalho O Édipo brasileiro: a dupla negação de gênero e raça a autora não desenvolve explicitamente a
questão posta
por Jim Swam: como é
que a criança
renega essa primeira experiência
com a babá e a
transfere para a mãe?
Ou não
renega? É bem conhecida a proposta de Gilberto Freyre, ao analisar as relações
entre a casa-grande e a senzala, afirmando, repetidamente, que era no convívio
íntimo com as mães pretas que se desenvolvia a atração dos brancos, quando
adultos, pelas negras, a marca da influência negra:
Da
escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer,
ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou
as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o
primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico
e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de
homem (Freyre,1984:283).
Romantismos
sociológicos à parte, Freyre, assim como Graham, traça um convincente retrato
da intromissão das mulheres "de cor" na vida íntima da família
brasileira branca, ou nem tanto, que teria resultado numa convivência também
íntima entre brancos e negras no nosso país ainda que raramente o
vice-versa. Essa atração
parece ter se cristalizado no mito brasileiro da "mulata gostosa",
mas se, como sugeri em outro lugar (Corrêa,
1996), esse mito só
pôde se
constituir pela negação
da negra preta, se a mãe
preta dá lugar à mulata no imaginário brasileiro, isso sugere uma ambivalência
entre as duas mães
a preta e a branca?
O que
se nega e o que se incorpora dessa convivência afetiva na infância ainda está
por ser analisado. Observando, no entanto, qualquer vizinhança de um bairro de
classe média brasileira é possível notar que a convivência cotidiana de
crianças brancas com babás negras não é apenas uma relação historicamente
situada, mas está presente, até hoje, entre nós. Talvez seja possível avançar
um pouco nesse questionamento sobre o que é negado e o que é incorporado dessa
experiência afetiva infantil aproveitando a sugestão de McClintock sobre a
duplicidade presente na unidade doméstica vitoriana mas não mais pensando na distinção entre a mãe-boa e a babá-má (a santa e a
puta) e sim na ambigüidade que a própria figura da ama de leite/babá/empregada
doméstica encarnava no Brasil do século 19 e encarna ainda hoje.
Numa
importante pesquisa sobre as fotografias de negros no Brasil, Sandra Koutsoukos
(2006) dedica todo um capítulo às amas de leite, não só analisando inúmeras
fotos de mulheres negras com crianças brancas ao colo, mas descrevendo a
percepção social sobre essas mulheres, seja por parte de médicos, seja na ficção
literária, seja na relação com as famílias. Nessa descrição, fica muito claro
que a ama de leite expressava, na mesma pessoa, a duplicidade que vem sendo
aqui apontada entre a mãe e a babá. Ela é a figura explícita da dubiedade podendo levar para dentro de
casa todos os males de que porventura fosse portadora, ou toda a bondade e
carinho esperados de alguém que entrega seu leite a uma criança que não é seu
filho. Atacada na literatura ficcional ou médica, ou amorosamente retratada
pelas famílias, a ama de leite corporificava uma figura ambígua, que podia ser
boa e má ao mesmo tempo.37 Tal ambiguidade só seria resolvida com a decidida
defesa, por parte dos médicos, do aleitamento materno e o consequente ataque às
"amas mercenárias"
tanto negras como brancas, as que entravam no mercado com a imigração quando, então, sua figura se desdobraria em
mãe-boa/ama-má. Com a persistência da utilização de mulheres pobres e mais
escuras como babás,
no entanto, a ambiguidade
da relação da
criança com sua
babá retorna.38
E será, também, reposta em outros termos,
explicitando as ansiedades familiares em relação a essa figura que, quando
vista de maneira benigna "é como se fizesse parte da família", e que,
quando vista de maneira maligna, é alguém que traz os males do mundo para
dentro de casa.
Numa
discussão recente, durante uma reunião do grupo de trabalho da Comissão de
Direitos Humanos do Senado, o padre Cláudio Antonio Delfino explicitava seus
temores a respeito de babás lésbicas:
Tenho,
por exemplo, uma sobrinha de um ano e dois meses. Imaginemos que colocássemos
em casa alguém para ser babá dessa menina e viéssemos a descobrir com o tempo
que a pessoa era homossexual e que tratasse de modo indevido a criança, que não
tem como se defender. Agora, a pergunta que se faz é a seguinte: depois de
descobrir isso, eu teria ou não o direito de dispensar essa pessoa porque
estava tratando a criança de um modo que, para a família, seria inadequado?.39
Mais de
um século depois de ter sido supostamente abandonada, a teoria da sedução
continua a ser evocada para nomear o perigo (ou fantasma) que ronda as famílias
um
fantasma (ou perigo) exterior
que renega, ou esquece, os perigos interiores, postos em cena por vários analistas, há muito tempo. Essa é a cena que está posta em questão por esse debate: as ameaças às
crianças vêm de fora ou vêm do interior das famílias?40 No debate sobre a
sedução de crianças, a primeira resposta parecia apontar para uma ameaça
interna, reforçada pela bibliografia contemporânea sobre a questão do abuso
sexual e do incesto.41 A segunda resposta apontava para os perigos exteriores simbolizados pelas agressões de classe, etnia, raça, religião, etc. que, entrando por assim dizer
pela porta dos fundos, ameaçavam
a suposta paz das famílias.
Ou, como diz Gallop, a família
está, afinal,
aberta ou fechada ao mundo?
Talvez
pensar sobre como as babás, de todas as procedências, e particularmente aquelas
vindas de países pobres para os países ricos, ou das regiões mais pobres para
as regiões mais ricas dos países pobres, têm sido importantes como a segunda
mãe de crianças no mundo todo, possa nos ajudar a refletir sobre como os
cruzamentos das categorias socialmente subordinadas (das quais as babás sempre
fazem parte, seja como integrantes de grupos étnicos, migrantes, seja como
socialmente subalternas , seja como meninas recrutadas para cuidar de bebês, ou
crianças, de outras classes sociais
isto é,
subordinadas pela sua posição
de raça, classe
ou idade) com as categorias subordinadas de idade (as crianças das quais elas cuidam), nos
levem a refletir sobre a importância da infância para a nossa vida adulta e sobre o fato, sobejamente
enfatizado em qualquer uma das "novelas das oito", sobre como as famílias não estão imunes ao mundo que as cerca.
A peste
Li em
algum lugar que, ao entrar no porto de Nova Iorque, em sua primeira viagem à
América, Freud teria comentado com Jung: "eles não sabem que estamos lhes
trazendo a peste". A peste, como metáfora de algo que é levado do exterior
para o interior, certamente continua a se espalhar até hoje, no âmbito da
releitura da história freudiana: há sempre uma carta, um depoimento, ou algum
documento não mencionado antes, que mostram que as coisas não eram bem assim,
que o que tinha sido mostrado não era tudo o que havia para ser mostrado, ou
que o que foi mostrado não correspondia à análise feita. Isto é, que as
fantasias sobre essa história fazem parte de uma análise sem fim, ou de uma
análise interminável.42
Parece
que o mesmo se passa com as babás/criadas/ governantas toda a discussão acompanhada até aqui mostra
uma certa unanimidade na análise das empregadas domésticas: são perigos do
exterior (de fora para dentro, da rua para a casa, do público para o privado)
os que põem em risco as relações familiares existentes. As babás/criadas,
guardiãs de uma história que poucos conhecem, trazem para dentro de casa uma
peste que, afinal, acaba se expressando de alguma maneira. A recente notícia do
espancamento gratuito sofrido por uma empregada doméstica e outras mulheres pobres num ponto de ônibus, por rapazes de classe
média no Rio de Janeiro, parece estar apontando para um problema maior do que o
expresso nos faits-divers dos jornais, ou nos comentários indignados de
editoriais e cartas de leitores: uma intersecção estrutural entre as classes
neste país, historicamente presente há muito tempo e que remete, quem sabe, à
questão de os jovens estarem tentando se desforrar, na rua, da abjeção que
incorporaram em casa. A abjeção sendo, ela própria, um conceito que expressa
incorporação e expulsão
traz para dentro e põe para fora. Talvez nós, feministas, devêssemos nos
dedicar mais a refletir sobre isso.
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