A
teologia da tragédia //
Onde
está Deus quando uma catástrofe acontece?
Por
Augustus Nicodemus Lopes
É
preocupante a maneira como alguns cristãos estão querendo entender as
catástrofes e tragédias que os jornais têm noticiado nos últimos dias. Revoltam-se
com o fato de que centenas de pessoas boas, desprevenidas, cidadãos de bem,
foram apanhadas numa tragédia e morreram de forma terrível, deixando para trás
famílias, filhos, entes queridos. Perguntam-se, em grande aflição: "Onde
estava Deus quando tudo isso aconteceu?".
Entendemos
essa preocupação com o dilema moral que as tragédias representam quando vistas
com base no conceito cristão histórico e tradicional de Deus. Se Deus é
pessoal, soberano, Todo-Poderoso, onisciente, amoroso e bom, como, então,
podemos explicar às tragédias, as calamidades, as doenças, os sofrimentos que
atingem bons e maus ao mesmo tempo?
Tentando
responder a essa pergunta, desenvolveu-se, em nosso meio, a teologia do
processo, ou teologia relacional, também conhecida como "teísmo
aberto". A seguir, refletiremos sobre essa corrente teológica e suas
implicações.
A
fragilidade do teísmo aberto
A
teologia relacional, como movimento, teve início em décadas recentes, embora
seus conceitos sejam bem antigos. Ela ganhou popularidade por meio de
escritores norte-americanos como Greg Boyd, John Sanders e Clark Pinnock. No
Brasil, essas idéias têm sido assimiladas e difundidas por alguns líderes
evangélicos, às vezes, de forma aberta e explícita.
A
teologia relacional considera a concepção tradicional de Deus inadequada,
ultrapassada e insuficiente para explicar a realidade, especialmente
catástrofes, como, por exemplo, o tsunami de março de 2011, e se apresenta como
uma nova visão sobre Deus e sua maneira de se relacionar com a criação. Seus
pontos principais podem ser resumidos da seguinte forma:
1. O
atributo mais importante de Deus é o amor. Todos os demais estão subordinados a
esse. Isso significa que Deus é sensível e se comove com os dramas de suas
criaturas.
2. Deus
não é soberano. Só pode haver real relacionamento entre Deus e suas criaturas
se estas tiverem, de fato, capacidade e liberdade para cooperar ou contrariar
os desígnios últimos de Deus. Deus abriu mão de sua soberania para que isso
ocorresse. Portanto, Deus é incapaz de realizar tudo o que deseja, como impedir
tragédias e erradicar o mal. Contudo, Ele acaba se adequando às decisões
humanas e, ao final, vai obter seus objetivos eternos, pois redesenha a
história de acordo com essas decisões.
3. Deus
ignora o futuro, pois Ele vive no tempo e não fora dele. Deus aprende com o
passar do tempo. O futuro é determinado pela combinação do que Deus e suas
criaturas decidem fazer. Nesse sentido, o futuro inexiste, pois os seres
humanos são absolutamente livres para decidir o que quiserem e Deus não sabe
antecipadamente que decisão determinada pessoa haverá de tomar em determinado
momento.
4. Deus
se arrisca. Ao criar seres racionais livres, Deus estava se arriscando, pois
não sabia qual seria a decisão dos anjos e de Adão e Eva. E continua a se
arriscar diariamente. Deus corre riscos porque ama suas criaturas, respeita a
liberdade delas e deseja relacionar-se com elas de forma significativa.
5. Deus
é vulnerável. Ele é passível de sofrimento e de erros em seus conselhos e orientações.
Em seu relacionamento com o homem, seus planos podem ser frustrados. Ele se
frustra e expressa esta frustração quando os seres humanos não fazem o que Ele
gostaria.
6. Deus
muda. Ele é imutável apenas em sua essência, mas muda de planos e até mesmo se
arrepende de decisões tomadas. Ele muda de acordo com as decisões de suas
criaturas, ao reagir a elas. Os textos bíblicos que falam do arrependimento de
Deus não devem ser interpretados de forma figurada. Eles expressam o que
realmente acontece com Deus.
Esses
conceitos sobre Deus decorrem da lógica adotada pela teologia relacional quanto
ao conceito da liberdade plena do homem, que é o ponto doutrinário central da
sua estrutura, a sua "menina dos olhos". De acordo com a teologia
relacional, para que o homem tenha realmente pleno livre-arbítrio, suas
decisões não podem sofrer qualquer tipo de influência externa ou interna.
Portanto, Deus não pode ter decretado essas decisões, e muito menos tê-las
conhecido antecipadamente.
Dessa
forma, a teologia relacional rejeita não somente o conceito de que Deus
preordenou todas as coisas (calvinismo) como também o conceito de que Deus sabe
todas as coisas antecipadamente (arminianismo tradicional).
Nesse
sentido, o assunto deve ser entendido não como uma discussão entre calvinistas
e arminianos, mas uma discussão dos dois sobre a teologia relacional. Vários
líderes calvinistas e arminianos, em todo o mundo, têm considerado essa visão
da teologia relacional alheia ao cristianismo.
A
teologia relacional traz um forte apelo a alguns evangélicos, pois diz que Deus
está mais próximo de nós e se relaciona mais significativamente conosco do que
tem sido apresentado pela teologia tradicional.
Segundo
os teólogos relacionais, o cristianismo histórico tem apresentado um Deus
impassível, que não se sensibiliza com os dramas de suas criaturas. A teologia
relacional, por sua vez, pretende apresentar um Deus mais humano, que constrói
o futuro mediante o relacionamento com suas criaturas. Os seres humanos são,
dessa forma, coparticipantes com Deus na construção do futuro, podendo, na
verdade, determiná-lo por suas atitudes.
Contudo,
a teologia relacional não é novidade. Ela tem raízes em conceitos antigos de
filósofos gregos: no socinianismo (que negava exatamente que Deus conhecia o
futuro, pois atos livres não podem ser preditos) e, especialmente, nas
ideologias modernas, como a teologia do processo. O que ela tem de novo é que
virou um movimento teológico composto de escritores e teólogos que se uniram em
torno dos pontos comuns e estão dispostos a persuadir a Igreja cristã a
abandonar seu conceito tradicional de Deus e a convencê-la de que essa
"nova" visão de Deus é evangélica e bíblica.
Mesmo
tendo surgido como uma reação a uma possível ênfase exagerada na impassividade
e transcendência de Deus, a teologia relacional acaba sendo um problema para a
Igreja evangélica, especialmente em seu conceito sobre Deus. Embora os
evangélicos tenham divergências em algumas questões, reformados, arminianos,
wesleyanos, pentecostais, tradicionais, neopentecostais, entre outros, todos
concordam, no mínimo, que Deus conhece todas as coisas, que é onipotente e
soberano.
Entretanto,
o Deus da teologia relacional é totalmente diferente do Deus da teologia
cristã. Não se pode afirmar que os adeptos da teologia relacional não são
cristãos, mas, sim, que o conceito que eles têm de Deus é, no mínimo, estranho
ao cristianismo histórico.
Ao
declarar que o atributo mais importante de Deus é o amor, a teologia relacional
perde o equilíbrio entre as qualidades de Deus apresentadas na Bíblia, entre as
quais o amor é apenas uma delas.
Ao
dizer que Deus ignora o futuro, é vulnerável e mutável, deixa sem explicação
adequada dezenas de passagens bíblicas que falam da soberania, do senhorio, da
onipotência e da onisciência de Deus (Is 46.10a; Jó 28; Jó 42.2; Sl 90; Sl 139;
Rm 8.29; Ef 1; Tg 1.17; Ml 3.6; Gn 17.1, entre outros).
Ao
dizer que Deus não sabia qual seria a decisão de Adão e Eva no Éden, e que,
mesmo assim, arriscou-se em criá-los com livre-arbítrio, a teologia relacional
transforma Deus em um ser irresponsável.
Ao
falar do homem como co-construtor de Deus de um futuro que inexiste, a teologia
relacional esquece tudo o que a Bíblia ensina sobre a queda e a corrupção do
homem.
Ao fim,
parece-nos que, na tentativa extrema de resguardar a plena liberdade do
arbítrio humano, a teologia relacional está disposta a sacrificar a divindade
de Deus. Ao limitar sua soberania e seu pleno conhecimento, entroniza o homem
livre, todo-poderoso, no trono do Universo e, dessa forma, deixa-nos o
desespero como única alternativa diante das tragédias e catástrofes deste mundo
e o ceticismo como única atitude diante da realidade do mal no Universo,
roubando-nos o final feliz prometido na Bíblia. Pois, afinal, poderá este Deus
ignorante, fraco, mutável, vulnerável e limitado cumprir tudo o que prometeu?
A queda
do homem e o caráter de Deus
Cremos
que qualquer tentativa que um cristão que crê que a Bíblia é a Palavra de Deus
faça para entender as tragédias, os desastres, as catástrofes e muitos outros
males que sobrevêm à humanidade não pode deixar de levar em consideração dois
componentes da revelação bíblica, que são a realidade da queda moral e
espiritual do homem e o caráter santo e justo de Deus.
Lemos,
em Gênesis 1-3, que Deus criou o homem, macho e fêmea, à sua imagem e
semelhança, e que os colocou no jardim do Éden com o mandamento para que não
comessem do fruto proibido. O texto relata como eles desobedeceram a Deus,
seduzidos pela astúcia e tentação de Satanás, e decaíram assim do estado de
inocência, retidão e pureza em que haviam sido criados. As conseqüências, além
da queda daquela retidão com que haviam sido criados, foram a separação de
Deus, a perda da comunhão com Ele e a corrupção por inteiro de suas faculdades,
como, por exemplo, vontade, entendimento, emoções, consciência e arbítrio. Pior
de tudo: ficaram sujeitos à morte, tanto espiritual, que consiste na separação
de Deus, como a física e a eterna, sendo, esta última, a separação de Deus por
toda a eternidade.
Esse
fato, que chamamos de "queda," afetou não somente Adão e Eva, antes,
trouxe conseqüências terríveis a toda a sua descendência, isto é, à humanidade
que deles procede, pois eles, Adão e Eva, eram o tronco e a cabeça da raça
humana. Em outras palavras, a culpa deles foi imputada por Deus aos seus
filhos, e a corrupção de sua natureza foi transmitida por geração ordinária a
todos os seus descendentes.
Desde
cedo na história da Igreja cristã, essa doutrina, que tem sido chamada de
"pecado original", foi questionada por pessoas como Pelágio, que
afirmava que o pecado de Adão e Eva afetou somente a eles mesmos, e que seus
filhos nasciam isentos, neutros, sem pecado, sem culpa e sem corrupção inata.
Tal idéia foi habilmente rechaçada por homens como Agostinho, Lutero, Calvino e
muitos outros, que demonstraram claramente que o ensino bíblico é o que
chamamos de "depravação total e transmitida", "culpa
imputada" e "corrupção herdada". As conseqüências práticas para
nós, hoje, são terríveis. Por causa dessa corrupção inata, com a qual já
nascemos, somos totalmente indispostos para com as coisas de Deus; somos, por
natureza, inimigos de Deus e, portanto, filhos da ira. É dessa natureza
corrompida que procedem os nossos pecados, as nossas transgressões, as nossas
desobediências e as nossas revoltas contra Deus e sua Palavra.
Agora,
chegamos ao ponto crucial e mais relevante ao nosso assunto. Entendemos que a
Bíblia deixa claro que os nossos pecados, tanto o original quanto os pecados
atuais que cometemos, por serem transgressões da lei de Deus, nos tornam
culpados e, portanto, sujeitos à ira justa de Deus, à sua justiça retributiva,
pela qual Ele trata o pecador de acordo com o que o pecador merece. Ou seja, a
humanidade inteira, sem exceção - visto que não há um único justo, um único que
seja inocente e sem pecado - está sujeita ao justo castigo de Deus, o que
inclui (atenção!) a morte, as misérias espirituais, temporais (no qual se
enquadram as tragédias, as calamidades, os desastres, as doenças e os
sofrimentos) e as misérias espirituais (que a Bíblia chama de morte eterna,
inferno, lago de fogo, etc.).
As
determinações de Deus
A
Bíblia revela, com muita clareza e sem a menor preocupação de deixar Deus
sujeito à crítica de ser cruel, déspota e injusto, que Ele mesmo é quem
determinou tragédias e calamidades sobre a raça humana, como parte das misérias
temporais causadas pelo pecado original e as transgressões atuais. Isto, é
claro, se acreditarmos realmente que a Bíblia é a Palavra de Deus e não uma
coleção de idéias, lendas, sagas, mitos e histórias politicamente motivadas e
destinadas a justificar seus autores.
De
acordo com a Bíblia:
1. Foi
Deus quem condenou a raça humana à morte no jardim: "Mas da árvore do
conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela
comeres, certamente morrerás" (cf. Gn 2.17 com Hb 9.27).
2. Foi
Deus quem determinou a catástrofe do dilúvio, que aniquilou a raça humana, com
exceção da família de Noé: "Porque eis que eu trago um dilúvio de águas
sobre a terra, para desfazer toda a carne em que há espírito de vida debaixo
dos céus; tudo o que há na terra expirará" (cf. Gn 6.17 com Mt 24.39 e 2Pe
2.5).
3. Foi
Deus quem destruiu Sodoma, Gomorra e outras cidades da região com fogo caído do
céu: "Então, o Senhor fez chover enxofre e fogo, do SENHOR desde os céus,
sobre Sodoma e Gomorra; e destruiu aquelas cidades e toda aquela campina, e
todos os moradores daquelas cidades, e o que nascia da terra" (Gn
19.24,25).
4. Foi
Deus quem levantou e enviou os caldeus contra a nação de Israel e demais nações
ao redor do Mediterrâneo, os quais mataram mulheres, velhos e crianças e
fizeram prisioneiros de guerra: "O Senhor levantará contra ti uma nação de
longe, da extremidade da terra, que voa como a águia, nação cuja língua não
entenderás; nação feroz de rosto, que não respeitará o rosto do velho, nem se
apiedará do moço; e comerá o fruto dos teus animais, e o fruto da tua terra,
até que sejas destruído; e não te deixará grão, mosto, nem azeite, nem crias
das tuas vacas, nem das tuas ovelhas, até que te haja consumido; e sitiar-te-á
em todas as tuas portas, até que venham a cair os teus altos e fortes muros, em
que confiavas em toda a tua terra; e te sitiará em todas as tuas portas, em
toda a tua terra que te tem dado o Senhor teu Deus" (Dt 28.49-52; Hc
1.6-11).
5. Foi
Deus quem levantou e enviou contra Israel povos vizinhos para saquear, matar e
fazer prisioneiros: "E o Senhor enviou contra ele as tropas dos caldeus,
as tropas dos sírios, as tropas dos moabitas e as tropas dos filhos de Amom; e
as enviou contra Judá, para o destruir, conforme a palavra do Senhor, que
falara pelo ministério de seus servos, os profetas" (2Re 24.2; 2Cr 36.17;
Jr 1.15,16).
6. Foi
Deus quem ameaçou Israel com doenças, pestes, fomes, carestia, seca e pragas
caso se desviassem dos seus caminhos. O texto é extenso, mas é muito forte e
merece a leitura: "Será, porém, que, se não deres ouvidos à voz do Senhor
teu Deus, para não cuidares em cumprir todos os seus mandamentos e os seus
estatutos, que hoje te ordeno, então virão sobre ti todas estas maldições, e te
alcançarão [...] O Senhor fará pegar em ti a pestilência, até que te consuma da
terra a que passas a possuir. O Senhor te ferirá com a tísica e com a febre, e
com a inflamação, e com o calor ardente, e com a secura, e com crestamento e
com ferrugem; e te perseguirão até que pereças [...] E o teu cadáver servirá de
comida a todas as aves dos céus, e aos animais da terra; e ninguém os espantará
[...] e todas estas maldições virão sobre ti, e te perseguirão, e te
alcançarão, até que sejas destruído; porquanto não ouviste a voz do Senhor teu
Deus, para guardares os seus mandamentos, e os seus estatutos, que te tem
ordenado" (Dt 28.15-45).
7. Foi
Deus quem enviou as dez pragas contra o Egito, ferindo, matando e trazendo
sofrimento a milhares de egípcios, inclusive matando os seus primogênitos:
"Então, disse o Senhor a Moisés: Levanta-te pela manhã cedo, e põe-te
diante de Faraó, e dize-lhe: Assim diz o Senhor Deus dos hebreus: Deixa ir o
meu povo, para que me sirva; porque esta vez enviarei todas as minhas pragas
sobre o teu coração, e sobre os teus servos, e sobre o teu povo, para que
saibas que não há outro como eu em toda a terra" (Êx 9.13,14).
8. Foi
o próprio Jesus quem revelou a João o envio de catástrofes futuras sobre a raça
humana, como castigos de Deus, próximos da vinda do Senhor, conforme o livro de
Apocalipse, tais como guerras, fomes, pestes, pragas, doenças (Ap 6-9), entre
outros: "Porquanto se levantará nação contra nação, e reino contra reino,
e haverá fomes, e pestes, e terremotos, em vários lugares" (Mt 24.7).
9. Foi
o próprio Jesus quem profetizou a chegada de guerras, fomes, terremotos,
epidemias (Lc 21.9-11) e a destruição de Jerusalém, que Ele chamou de
"dias de vingança" de Deus contra o povo que matou o seu Filho, nos
quais até mesmo as grávidas haveriam de sofrer: "Mas, quando virdes
Jerusalém cercada de exércitos, sabei então que é chegada a sua desolação.
Então, os que estiverem na Judéia, fujam para os montes; os que estiverem no
meio da cidade, saiam; e os que estiverem nos campos não entrem nela. Porque
dias de vingança são estes, para que se cumpram todas as coisas que estão
escritas. Mas ai das grávidas, e das que criarem naqueles dias! porque haverá
grande aperto na terra, e ira sobre este povo. E cairão ao fio da espada, e
para todas as nações serão levados cativos; e Jerusalém será pisada pelos
gentios, até que os tempos dos gentios se completem. E haverá sinais no sol e
na lua e nas estrelas; e na terra angústia das nações, em perplexidade pelo
bramido do mar e das ondas. Homens desmaiando de terror, na expectação das
coisas que sobrevirão ao mundo; porquanto as virtudes do céu serão abaladas"
(Lc 21.20-26).
10. E,
por fim, foi Deus quem já decretou a catástrofe final, a destruição do mundo
presente, por meio do fogo, no dia do juízo final: "Mas os céus e a terra
que agora existem pela mesma palavra se reservam como tesouro, e se guardam para
o fogo, até o dia do juízo, e da perdição dos homens ímpios [...] Mas, o dia do
Senhor virá como o ladrão de noite; no qual os céus passarão com grande
estrondo, e os elementos, ardendo, se desfarão, e a terra, e as obras que nela
há, se queimarão. Havendo, pois, de perecer todas estas coisas, que pessoas vos
convém ser em santo trato, e piedade, aguardando, e apressando-vos para a vinda
do dia de Deus, em que os céus, em fogo se desfarão, e os elementos, ardendo,
se fundirão?" (2Pe 3.7,10-12).
Isso não
significa, na Bíblia, que o sofrimento das pessoas é sempre causado por uma
culpa individual e específica. Há casos, sim, em que as pessoas foram
castigadas com sofrimentos temporais em virtude de pecados específicos que
cometeram, como, por exemplo, o rei Uzias, que foi ferido de lepra por causa de
seu pecado: "Então Uzias se indignou; e tinha o incensário na sua mão para
queimar incenso. Indignando-se ele, pois, contra os sacerdotes, a lepra lhe
saiu à testa perante os sacerdotes, na casa do Senhor, junto ao altar do
incenso" (2Cr 26.19. Cf., também, o caso de Miriã, em Nm 12.10).
O rei
Davi perdeu um filho por causa de seu adultério: "Todavia, porquanto com
este feito [o adultério] deste lugar sobremaneira a que os inimigos do Senhor
blasfemem, também o filho que te nasceu certamente morrerá" (2Sm 12.14).
Mas, em muitos outros casos, as tragédias, as catástrofes, as doenças e os
sofrimentos não se devem a um pecado específico, mas fazem parte das misérias
temporais que sobrevêm a toda a raça humana por conta do estado de pecado e
culpa em geral em que todos nós nos encontramos.
A
pedagogia de Deus
Deus
traz essas misérias e castigos para despertar a raça humana, para provocar o
arrependimento, para refrear o pecado do homem, para incutir-lhe temor de Deus,
para desapegar o homem das coisas desta vida e levá-lo a refletir sobre as
coisas vindouras. Veja, por exemplo, a reflexão atribuída a Moisés no Salmo 90,
provavelmente escrito durante os quarenta anos de peregrinação no deserto. Veja
frases como estas: "Tu reduzes o homem ao pó e dizes: Tornai, filhos dos
homens [...] Tu os arrastas na torrente, são como um sono, como a relva que
floresce de madrugada; de madrugada, viceja e floresce; à tarde, murcha e seca.
Pois somos consumidos pela tua ira e pelo teu furor, conturbados. Diante de ti
puseste as nossas iniqüidades e, sob a luz do teu rosto, os nossos pecados
ocultos. Pois todos os nossos dias se passam na tua ira; acabam-se os nossos
anos como um breve pensamento...".
Não
devemos pensar que aquelas pessoas que ficam doentes, passam por tragédias,
morrem em catástrofes - como as crianças de Realengo (bairro do RJ) ou os
japoneses - eram mais pecadoras do que as demais ou que cometeram determinados
pecados que lhes acarretou tal castigo. Foi o próprio Jesus quem ensinou isto
quando lhe falaram do massacre dos galileus cometido por Pilatos e a tragédia
da queda da torre de Siloé que matou dezoito: "E, naquele mesmo tempo,
estavam presentes ali alguns que lhe falavam dos galileus, cujo sangue Pilatos
misturara com os seus sacrifícios. E, respondendo Jesus, disse-lhes: Cuidais
vós que esses galileus foram mais pecadores do que todos os galileus, por terem
padecido tais coisas? Não, vos digo; antes, se não vos arrependerdes, todos de
igual modo perecereis. E aqueles dezoito, sobre os quais caiu a torre de Siloé
e os matou, cuidais que foram mais culpados do que todos quantos homens habitam
em Jerusalém? Não, vos digo; antes, se não vos arrependerdes, todos de igual
modo perecereis" (Lc 13.1-5).
Jesus
ensinou a mesma coisa no caso do cego relatado em João 9.3,4. Os seus
discípulos levantaram o problema do sofrimento do cego com base em um conceito
individualista de culpa, ponto que foi rejeitado por Jesus. A cegueira dele não
se deveu a um pecado específico, quer dele, quer de seus pais. As pessoas
nascem cegas, deformadas, morrem em tragédias e acidentes, perdem tudo o que
têm em catástrofes, não necessariamente porque são mais pecadoras do que as
demais, mas porque somos todos pecadores, culpados e sujeitos às misérias,
castigos e males aqui neste mundo.
No caso
do cego, Jesus disse que ele nascera assim "para que se manifestem nele as
obras de Deus" (Jo 9.3). Sofrimento, calamidades e coisas afins não são
somente um prelúdio do julgamento eterno de Deus; há também um tipo de
sofrimento no qual Deus é glorificado por meio de Cristo em sua graça, e assim
se torna, portanto, um exemplo e um prelúdio da salvação eterna. As tragédias
servem para levar as pessoas a refletir sobre a temporalidade e fragilidade da vida,
e para levá-las a refletir nas coisas espirituais e eternas. Muitos têm
encontrado Deus no caminho do sofrimento.
O que
eu quero dizer, meu amigo, é que, diante de catástrofes como o terremoto
seguido de tsunami no Japão, devemos lembrar que eles ocorrem como parte das
misérias e castigos temporais resultantes de nossas culpas, de nossos pecados,
como raça pecadora que somos. Qualquer um de nós poderia ter sido uma vítima.
Ou, alguém muito melhor e mais reto diante de Deus. Ainda assim, Deus não teria
cometido qualquer injustiça, ainda que as cidades atingidas estivessem cheias
dos melhores homens e mulheres que já pisaram a face da terra. Pois, mesmo
estes são pecadores. Não existem inocentes diante de Deus, meu amigo. Pense
nisso, antes de ficar indignado contra Deus diante do sofrimento humano.
Por
último, precisamos deixar claro duas coisas para você. Primeira, que nada do
que eu disse me impede de chorar com os que choram e sofrer com os que sofrem.
Somos membros da mesma raça, e quando um sofre, sofremos com ele. Segunda, é
preciso reconhecer que a revelação bíblica é suficiente, mas não exaustiva. Não
temos todas as respostas para todas as perguntas que se levantam quando uma
tragédias dessas acontece.
Com
certeza, a visão tradicional de Deus, adotada pelo cristianismo histórico por
séculos, não é capaz de responder exaustivamente a todos os questionamentos
sobre o ser e os planos de Deus. Ela própria é a primeira a admitir esse ponto.
Contudo, é preferível permanecer com perguntas não respondidas a aceitar
respostas que contrariem conceitos claros das Escrituras. Como já havia
declarado Jó há milênios (42.2,3): "Bem sei que tudo podes, e nenhum dos
teus planos pode ser frustrado. Quem é aquele, como disseste, que sem
conhecimento encobre o conselho? Na verdade, falei do que não entendia; cousas
maravilhosas demais para mim, coisas que eu não conhecia".
Podemos
não saber os motivos específicos de determinados males que nos assolam, mas
consola-nos saber que Deus é justo, bom e verdadeiro, e que todas as suas obras
são perfeitas e retas, e que nele não há engano. No mais, terminamos com um
apelo aos nossos leitores para que estejam sempre prontos a ser chamados à
presença de Deus a qualquer instante. Somente em Cristo encontramos perdão para
os nossos pecados e reconciliação com Deus.
*Esta matéria é uma adaptação dos textos do autor, sobretudo, de
uma carta fictícia, elaborada com a finalidade de responder aos anseios dos
cristãos em face das tragédias ocorridas em nosso cotidiano ("Carta a
Bonfim") e de um artigo escrito com o intuito de apresentar e refutar a
teologia relacional ("Um novo Deus no mercado").
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