HOLOCAUSTO
E ATUALIDADE 18ª.Parte
O
legado de Richard Wagner e a ópera a serviço do nazismo
Contemplar
ou estimar a obra de um dos maiores compositores clássicos de todos os tempos
não é um delito, mas o contexto é uma ferramenta importante para refletirmos
sobre seus significados.
Por
Carlos Reiss.
Um
concerto comemorativo dos 80 anos da Força Aérea Brasileira (FAB), realizado no
último dia 30 de novembro, causou controvérsia ao apresentar uma ópera de
Richard Wagner. A polêmica foi ressaltada pela presença do presidente da
República, que, da plateia, acompanhou a exibição da ópera Die Meistersinger
von Nürnberg [Os Mestres Cantores de Nuremberg], a única obra cômica do
compositor alemão, composta em 1867. Mas qual a razão da polêmica e como ela se
relaciona com o Holocausto? O que essa ópera possui de especial em relação ao
nazismo?
Um
judeu pode ter sido o delator de Anne Frank: e daí?
Wilhelm
Richard Wagner nasceu na pequena Leipzig, no futuro território unificado da
Alemanha. Maestro, poeta, teórico musical e ensaísta, Wagner compunha óperas
baseadas em contos de uma Alemanha mítica e predestinada à glória. Elas
pressupunham um povo alemão forte e unificado, o que pode ser observado em suas
constantes menções a um “Império Alemão”. Elas insuflaram o espírito alemão de
tal forma que colaboraram na geração de uma forte onda nacionalista. Faleceu em
1883, exatos 50 anos antes da ascensão do regime nazista.
Notório
antissemita, Wagner publicou o panfleto “O Judaísmo na Música”, no qual
desprezava a produção de compositores judeus como Felix Mendelssohn e Giacomo
Meyerbeer, além de defender um combate à influência judaica na vida musical. No
livreto, Wagner negava ao judeu toda possibilidade de criação artística,
inventiva própria e espiritualidade. Para ele, o judeu, além de “surpreender
primeiro por seu aspecto exterior, sempre ‘desagradável’”, não possuiria
“faculdade de expressar-se… (com) originalidade e personalidade”.
Adolf
Hitler adotou o já falecido Wagner como seu compositor predileto quando
assistiu a ópera Rienzi, no Império Austro-Húngaro, em 1906. Aproximou-se de
seus descendentes, tornando-se amigo íntimo de Winifred Wagner, diretora, à
época, do festival de Bayreuth (criado para cultuar a personalidade de Richard
Wagner) e casada com Siegfried Wagner, filho do compositor.
A
nazificação da figura de Wagner
Em 13
de fevereiro de 1933, data do cinquentenário da morte de Wagner e dias após a
indicação de Hitler como chanceler, foi realizada uma grande cerimônia em
Leipzig com a presença do alto escalão nazista. No mês seguinte, a obra Os
Mestres Cantores de Nuremberg, que trata de temas populares do século XV, foi
encenada na Ópera Estatal de Berlim para marcar simbolicamente a fundação do
Terceiro Reich. Considerada a “mais germânica de todas as óperas”, ela
retornaria triunfante à cidade-título em 1935, na forma do prelúdio de seu
terceiro ato, quando a famosa cineasta Leni Riefenstahl a utilizou no filme O
triunfo da vontade. A peça de propaganda, como sabemos, glorifica e mistifica
Hitler e o regime nazista, sendo um dentre vários exemplos da utilização da
ópera a serviço do nazismo.
Isto
significa que Wagner era nazista? Absolutamente, já que ele viveu ainda no
século XIX. No entanto, seria correto afirmar que Wagner foi “nazificado”, ao
mesmo tempo que o nazismo foi “wagnerizado”? Sem dúvidas. Bayreuth foi
transformada por Hitler na grande joia cultural da nova Alemanha, enquanto
Nuremberg, importante cidade desde o Sacro Império Romano-Germânico, foi
escolhida como local das grandes convenções e comícios nazistas.
Os
judeus não aparecem nas obras musicais de Wagner. Mesmo assim, por causa da
conexão entre sua figura e a propaganda nazista, o Estado de Israel proibiu que
fossem tocadas suas músicas em rádios e orquestras até 1986 e não teve suas
óperas executadas até o ano de 2001. O tabu caiu quando o maestro judeu nascido
na Argentina Daniel Barenboim resolveu incluir Wagner num concerto do Festival
de Jerusalém. Houve protestos de sobreviventes do Holocausto. Hoje, mesmo de
domínio público, evocá-lo em Israel ainda causa grande mal-estar.
Não
existe crime, mas existe contexto
Não
existe crime em apreciar a obra de Richard Wagner, um gênio da música
reconhecido por seu talento ímpar, mas ao mesmo tempo um antissemita e
nacionalista que se tornou admirado pelo Terceiro Reich. Como destacado pelo
renomado professor Edward Said, “uma mente madura deve ser capaz de admitir a
coexistência de dois fatos contraditórios: que Wagner foi um grande artista e,
segundo, que Wagner foi um ser humano abominável”.
Contemplar
ou estimar a obra de um dos maiores compositores clássicos de todos os tempos
não é um delito, mas o contexto é uma ferramenta importante para refletirmos
sobre seus significados. Quem não se lembra do ex-secretário nacional da Cultura
Roberto Alvim, exonerado após uma encenação grotesca de Joseph Goebbels,
ministro nazista da Propaganda? No caso, não havia coincidência na escolha da
ópera Lohengrin, de Richard Wagner, para anunciar seus planos de “avançar na
construção de uma nova e pujante civilização brasileira” – e muito menos no
fato de, na famosa autobiografia Mein Kampf, o ditador nazista ter descrito
como sua ida à mesma ópera wagneriana, aos 12 anos de idade, teria mudado sua
vida.
O
contexto faz a diferença.
Em
2013, nas comemorações de dois séculos do nascimento do compositor, gerou
grande repercussão a encenação de uma de suas óperas na Alemanha que,
originalmente passada na Idade Média e centrada em mitos germânicos, foi
transposta para o século XX e mostrava judeus sendo assassinados. A plateia se
revoltou, pessoas precisaram ser medicadas e a embaixada de Israel se
manifestou.
Novamente,
o contexto faz a diferença.
E no
caso do evento da FAB? Há controvérsias, mas também há contexto. Por um lado,
existem os que acham imprescindível separar a obra do compositor tanto de suas
opiniões racistas quanto da apropriação que o nazismo fez dela. Este é a
opinião do diretor cênico André Heller-Lopes, primeiro brasileiro a encenar o
ciclo de “O Anel dos Nibelungos” no país. Por outro, há os que afirmam que
“tocar Wagner é uma comunicação com os supremacistas brancos”. Caso do
compositor e musicólogo Jean Goldenbaum, doutor pela Universidade de Augsburg e
membro do Observatório Judaico dos Direitos Humanos. Esse ponto de vista já
havia sido apontado pelo renomado escritor Thomas Mann, ainda em 1949, ao
escrever: “com certeza, há muito ‘Hitler’ em Wagner.”
Fato é
que a presença da obra de Richard Wagner no concerto de estreia da Orquestra
Sinfônica da Força Aérea Brasileira não geraria repercussão caso o chefe do
Executivo brasileiro, em compromisso fora da agenda oficial, não estivesse na
plateia do teatro do Batalhão de Guarda Presidencial do Exército. Grandes
jornais e portais de notícia não teriam veiculado, em letras garrafais, sobre
supostas ligações ideológicas entre Wagner, Hitler e o presidente do Brasil. E
aqui, novamente existe o contexto. Quem teria criado o programa musical da
noite? Ele teria sido alterado? Haveria uma intencionalidade em transmitir uma
mensagem ou provocar a própria sociedade brasileira a partir do legado de
Wagner? Apenas os responsáveis poderiam responder esta e outras perguntas.
Wagner
nunca será “cancelado” – ele será sempre parte fundamental da história musical,
além de crucial para a formação de novos músicos. Porém, mais uma vez, o
contexto e o histórico fazem a diferença. Convenhamos, são vários exemplos de
analogias e comentários elogiosos ao nazismo por parte de políticos e
governantes nos últimos anos – alguns deles gravíssimos. Por isso, no caso
específico do concerto, a experiência é inconveniente e nosso incômodo é
inegável.
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