C. S. Lewis e como lidar
com a presunção, as discórdias e a língua ferina.
“Não nos deixe cair em tentação”
muitas vezes significa, “Negue-me convites gratificantes, contatos
interessantes”...
Por Paulo Ribeiro
A discórdia pode, às vezes, ser expressa
sem a aparência de presunção, se for feita com argumentos. O apoio geralmente
virá de alguém improvável, da comunidade, até descobrirmos que aqueles que eram
silenciosamente dissidentes constituíam a maioria.
O nosso desacordo em relação ao que as outras pessoas dizem, em minha opinião,
pode eventualmente ser expresso sem que sejamos pedantes, se o fizermos com
base em argumentos, e não de uma maneira autocrática.
Claro que o lado da verdade pode ser derrotado. Isso importa muito menos do que
eu costumava pensar. A própria pessoa que discutiu com você pode reconhecer
anos depois, que foi influenciada pelo que você disse.
É claro que surge um momento em que o grau de perversidade (injustiça,
canalhice e inverdades) atinge um nível contra o qual um protesto terá de ser
feito, mesmo com poucas chances de sucesso.
No entanto, há um tipo de mal contra o qual e preciso sempre protestar, por
menor que seja a chance de sucesso. Ha acordos cordiais, feitos com cinismo ou
com brutalidade, que precisam, inequivocadamente, ser estabelecidos. E se não
for possível fazer isso sem parecer pedante, então devemos parecer pedantes,
pois o que incomoda realmente não e parecer, mas ser pedante.
Se não gostamos suficientemente de fazer o protesto é improvável que sejamos
presunçosos na realidade. Aqueles que gostam de "testificar" estão em
uma posição diferente e mais perigosa. Mas há ambientes sociais tão sujos que
neles é quase um sintoma alarmante se uma pessoa nunca foi chamada de tal.
Da mesma forma, embora o pedantismo seja uma loucura e o esnobismo um vício, há
círculos em que apenas uma pessoa indiferente a tudo que acontece escapará de
ser chamado de pedante, e outros em que as maneiras são tão grosseiras,
espalhafatosas e desavergonhadas que uma pessoa (qualquer que seja sua posição
social) de bom gosto natural será chamado de presunçoso.
O que torna tão difícil esse contato com pessoas perversas é que lidar de forma
eficaz, não requer apenas boas intenções, mesmo com humildade e coragem; pode
exigir talentos sociais e até intelectuais que Deus não nos deu. Portanto, não
é hipocrisia, mas mera prudência evitá-la quando podemos.
Os salmistas não estavam errados quando descreveram o homem bom como evitando
"a cadeira dos escarnecedores" e temendo associar-se com os ímpios
para não "comer" (devemos dizer, rir, admirar, aprovar, justificar?)
"coisas que lhes agradam".
“Não nos deixes cair em tentação” quase sempre significa, entre outras
coisas: “Nega-me aqueles convites agradáveis, aqueles contatos altamente
interessantes, aquela participação nos grandes movimentos de nosso tempo que,
em geral e sob tal risco, eu desejo”.
Intimamente conectados com essas advertências contra o que chamo de
“conivência” estão os protestos do Saltério contra outros pecados da língua.
Sinto que, quando comecei a lê-los, eles me surpreenderam um pouco; eu, de
certa forma, esperava que, em uma época mais simples e mais violenta, em que se
usava a faca, o grande cajado e o tição para fazer o mal, as palavras não
fossem tão mordazes.
No entanto, na realidade, os salmistas não mencionam nenhum outro tipo de mal
mais frequentemente que este, um mal que a maioria das sociedades civilizadas
compartilha. “Suas gargantas são um tumulo aberto; com suas línguas enganam
sutilmente” (Sl 5.9); “Violência e maldade [ou “perjúrio”, na tradução do
doutor Moffatt] estão em sua língua” (10.7); “lábios bajuladores” (12.3);
“línguas acusadoras” (31.20); “palavras [...] maldosas e traiçoeiras” (36.3); o
cochicho dos homens maus (41.7); mentiras cruéis que cortam “como navalha”
(52.2); conversa que soam “mais suaves
que o
óleo, mas [...] afiadas como punhais” (55.21); zombaria impiedosa (102.8). O
Saltério está repleto disso. E quase possível ouvir o sussurro, a fofoca, a
mentira, a repreensão, a bajulação e a circulação de rumores incessantes.
Nenhum reajuste histórico ou cultural é necessário, mesmo 2.500 anos depois.
Estamos no mundo que conhecemos e Lewis poderia estar se referindo à
polarização religiosa e sociopolítica dos últimos anos no Brasil. Até mesmo
detectamos naquele coro murmurante e bajulador vozes que nos são familiares.
Uma delas é tão familiar que poderia ser facilmente reconhecida: minha própria
voz.
“E não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal, porque teu é o Reino,
o poder e a glória para sempre. Amém” (Mt 6.13)
> [Recortes e adaptação de Lendo
os Salmos, de C. S. Lewis (Editora Ultimato)
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